segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Motim

De repente, notei que estava atrasada um dia no calendário. A agenda estava atrasada, as anotações, atrasadas, os parabéns, atrasados. A cartela de comprimidos, os extratos do banco, as contas a pagar, os encontros marcados os felizes aniversários, tudo estava um dia antes. Ou um dia depois, dependendo do ponto de vista. Terá sumido um dia do meu calendário, fugido sem que eu notasse, ficando a semana mais curta e sobrando um dia lá no final? Ou terá brotado um dia em meio aos outros, tão sutil e rapidamente, que não tenha dado tempo de o meu calendário se esticar? Pode também um dia ter se divido em dois, ou dois terem brigado por um só lugar, sem que eu notasse dois dias com a mesma data. Pois o tempo, diria o Chapeleiro, se ofendeu certa vez com nossa atuação e, desde então, não faz nada do que pedimos.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Comportamento blasé

A música chata atravessa os ouvidos como uma multidão que arrebenta portões, mas eles parecem não se importar. As bocas, riem, sorriem, conversam e cantam, mas meus lábios não se desgrudam. Os rostos se contorcem em risos, choros e gritos. O meu, não expressa sentimento algum. Corpos dançam, pulam, se balançam. Em mim, nenhum músculo se move. Apenas os olhos não param, giram vagarosamente em ângulos extensos, julgando comportamentos, não perdendo um só movimento. Assim permaneci, estática, numa festa movimentada. Me esquivando, imóvel, de olhares indesejados, desviando a atenção para o vazio, até me desligar completamente e passar a flutuar no meu espaço paralelo, num comportamento completamente blasé.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Mania de amor, de cor e de dor

Ela tem essa mania de princesa. Teimosa, se enche de graça e se acha valente. Se tranca em seu castelo, onde pode ficar sozinha por dias, onde dança, briga, reclama, derrama rios de lágrimas e espalha roupas pelo chão. Bem no meio no meio do salão principal, tem um lustre, em que ela guarda suas melhores estrelinhas, pra que brilhem sempre perto dela, com sua magia de 48 cores aquareláveis. Lá na frente, tem um jardim, onde ela recebe as pessoas que gosta, onde ela se engraça e sorri, com um andar saltitante, ainda que, por dentro, sangre seu coração. Não, ninguém vai além do jardim. A única pessoa que ela permitiu entrar no castelo, manchou de cinza suas paredes cor-de-sol, quebrou seus cristais e a prataria. Por isso, hoje, ninguém entra lá; ela não quer perder a última flor que restou no arranjo da sala de estar. Só passará por aquelas portas, o valente que conseguir encarar o muro de pedras que ela mesma construiu, e trouxer em suas mãos pincéis e tintas suficientes para devolver a cor às suas paredes. Mas seu andar saltitante e seu sorriso intrigante não deixarão de brilhar enquanto houver o jardim, enquanto houver estrelas no lustre, enquanto viver a flor da qual ela cuida todas as manhãs. Haverá princesa enquanto existir castelo, haverá esperança enquanto existir amor.