quarta-feira, 21 de abril de 2010

We'll paint the town red and we'll shake the trees

Estive pensando em como as coisas são tão diferentes lá na terra de onde vim. Me lembro de as pessoas se importarem umas com as outras. Me lembro de o bem estar do seu amigo ser prioridade, acima de qualquer festa, de qualquer prova, de qualquer emprego, de qualquer compromisso. me lembro de as amizades serem incondicionais. Lá, as pessoas costumavam se importar com o "ser eternamente responsável por aquilo que cativas". Hoje vejo essa frase estampada na boca de quase todo mundo que encontro por aqui, mas ela não se fixa, de fato, no coração de nenhum deles, como se fazia cravada na alma daqueles que lá, talvez nunca nem a tivessem dito. E esse laço que tínhamos (e temos) é tão forte, que nem na distância se pôde perder. Sei disso, porque ao sinal da primeira lágrima que cai, ao primeiro aperto no peito, é por eles que meu coração pede. É a eles quem procuro, é o nome deles que digito por primeiro na lista de endereços do msn, do celular, é o nome que procuro na velha (e inseparável) agenda. É o nome ao lado de tantos poemas que já escrevi. E não é coisa minha, é coisa daquela velha terra vermelha, dos costumes daquela cidade de que eu costumava reclamar. Sei disso, por cada janelinha de msn que pula na minha frente tão de repente dizendo 'amiga, ainda está aí? preciso de você'. Sim, eu estou! E sempre estarei! Até o dia em que a gente se canse e resolva voltar, resolva estar perto de novo, e não perto de coração, mas perto de colo, de abraço. Porque, como eu já disse, naquela terra esse costuma ser um compromisso que está acima de qualquer escolha: a amizade de confiança incondicional.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Escaldado

Como um gato arisco, ao primeiro sinal de ameaça, eriçava o pêlo e esquivava, afastando-se com agilidade.
Não por medo, mas por esperteza e precaução, pois sabia que nem toda mão afável é devidamente confiável, que nem toda palavra dita é, por certo, verdade e nem todo olhar carinhoso, é de fato amigável.
E sabia disso porque até mesmo o mais dócil dos cães, certa vez, num súbito golpe já lhe havia mordido.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Quebre este copo


(trecho de “Na margem do rio Piedra eu sentei e chorei”)


O vinho tornava as coisas mais fáceis para ele. E para mim.

– Por que você parou de repente? Por que não quer falar de Deus, da Virgem, do mundo espiritual?

– Quero falar de outro tipo de amor – insistiu. – Aquele que um homem e uma mulher compartilham, e em que também se manifestam os milagres.

Segurei suas mãos. Ele podia conhecer os grandes mistérios da Deusa – mas de amor sabia tanto quanto eu. Mesmo que tivesse viajado tanto.

E teria que pagar um preço: a iniciativa. Porque a mulher paga o preço mais alto: a entrega.

Ficamos de mãos dadas por um longo tempo. Lia em seus olhos os medos ancestrais que o verdadeiro amor coloca como provas a serem vencidas. Li a lembrança da rejeição da noite anterior, o longo tempo que passamos separados, os anos no mosteiro em busca de um mundo onde estas coisas não aconteciam.

Lia em seus olhos as milhares de vezes em que havia imaginado este momento, os cenários que construíra ao nosso redor, o cabelo que eu devia estar usando e a cor da minha roupa. Eu queria dizer “sim”, que ele seria bem-vindo, que o meu coração havia vencido a batalha. Queria dizer o quanto o amava, o quanto o desejava naquele momento.

Mas continuei em silêncio. Assisti, como se fosse um sonho, à sua luta interior. Vi que tinha diante dele o meu “não”, o medo de me perder, as palavras duras que escutou em momentos semelhantes – porque todos passamos por isto, e acumulamos cicatrizes.

Seus olhos começaram a brilhar. Sabia que estava vencendo todas aquelas barreiras.


Então soltei uma das mãos, peguei um copo e coloquei na beirada da mesa.

– Vai cair – disse ele.

– Exato. Quero que você o derrube.

– Quebrar um copo?

Sim, quebrar um copo. Um gesto aparentemente simples, mas que envolvia pavores que nunca chegaremos a compreender direito. O que há de errado em quebrar um copo barato – quando todos nós já fizemos isto sem querer alguma vez na vida?

– Quebrar um copo? – repetiu ele. – Por quê?

– Posso dar algumas explicações – respondi. – Mas, na verdade, é apenas por quebrar.

– Por você?

– Claro que não.

Ele olhava o copo de vidro na beira da mesa – preocupado com que caísse.

“É um rito de passagem, como você mesmo fala”, tive vontade de dizer. “É o proibido. Copos não se quebram de propósito. Quando entramos em restaurantes ou em nossas casas, tomamos cuidado para que os copos não fiquem na beira da mesa. Nosso universo exige que tomemos cuidado para que os copos não caiam no chão.

Entretanto, continuei pensando, quando os quebramos sem querer, vemos que não era tão grave assim. O garçom diz “não tem importância”, e nunca na vida vi um copo quebrado ser incluído na conta de um restaurante. Quebrar copos faz parte da vida e não causamos qualquer dano a nós, ao restaurante, ou ao próximo.

Dei um esbarrão na mesa. O copo balançou, mas não caiu.

– Cuidado! – disse ele, instintivamente.

– Quebre o copo – eu insisti.

Quebre o copo, pensava comigo mesma, porque é um gesto simbólico. Procure entender que eu quebrei dentro de mim coisas muito mais importantes que um copo, e estou feliz por isto. Olhe para a sua própria luta interior e quebre este copo.

Porque nossos pais nos ensinaram a tomar cuidado com os copos, e com os corpos. Ensinaram que as paixões de infância são impossíveis, que não devemos afastar homens do sacerdócio, que as pessoas não fazem milagres, e que ninguém sai para uma viagem sem saber aonde vai.

Quebre este copo, por favor – e nos liberte de todos estes conceitos malditos, esta mania que se tem de explicar tudo e só fazer aquilo que os outros aprovam.

– Quebre este copo – pedi mais uma vez.

Ele fixou seus olhos nos meus. Depois, devagar, deslizou sua mão pelo tampo da mesa, até tocá-lo. Num rápido movimento, empurrou-o para o chão.


O barulho do vidro quebrado chamou a atenção de todos. Em vez de disfarçar o gesto com algum pedido de desculpas, ele me olhava sorrindo – e eu sorria de volta.

– Não tem importância – gritou o rapaz que atendia as mesas.

Mas ele não escutou. Havia se levantado, me agarrado pelos cabelos, e me beijava.

Eu também o agarrei nos cabelos, abracei-o com toda força, mordi seus lábios, senti sua língua se movendo dentro de minha boca. Era um beijo que havia esperado muito – que havia nascido junto dos rios de nossa infância, quando ainda não compreendíamos o significado do amor. Um beijo que ficou suspenso no ar quando crescemos, que viajou pelo mundo através da lembrança de uma medalha, que ficou escondido atrás de pilhas de livros de estudos para um emprego público. Um beijo que se perdeu tantas vezes e que agora tinha sido encontrado. Naquele minuto de beijo estavam anos de buscas, de desilusões, de sonhos impossíveis.

Eu o beijei com força. As poucas pessoas que estavam naquele bar devem ter olhado, e pensavam estar vendo apenas um beijo. Não sabiam que naquele minuto de beijo estava o resumo de minha vida, da vida dele, da vida de qualquer pessoa que espera, sonha e busca o seu caminho debaixo do sol.

Naquele minuto de beijo estavam todos os momentos de alegria que vivi.


[Paulo Coelho - Guerreiro da Luz Online]